Relance 196
Aborto, Barcos e 'Agit-prop'
Por ZITA SEABRA
Uma interrupção voluntária da gravidez, um aborto, é uma das situações mais dramáticas e solitárias pela qual uma mulher pode passar na sua vida.
A decisão de interromper o ciclo normal da vida e da gestação não deixa nunca de constituir um drama indimensionável, um momento de tal desespero e um desespero de tal dimensão capazes de fazer com que alguém não suporte uma gravidez e decida interrompê-la, seja em que condições for.
Perante este drama secular, os países democráticos, assentes num Estado de direito, procuraram aprovar legislação que dissuadisse e evitasse que, mesmo naquelas situações limite, esse caminho seja trilhado. Sobretudo que nestes casos extremos, com que a vida por vezes desafia as pessoas, o trilho não conduza ao vão de escada e à entrega nos meandros de um negócio que tem tanto de sórdido como de velho. O quadro legislativo pretendido pelos estados democráticos procurou apenas interferir no enquadrando legal de uma grave questão e não no terreno da ética e dos valores. A demonstrá-lo está o facto de apenas se terem demarcado as fronteiras, sem chegar nunca a legalizar e banalizar o aborto como um direito. Em todas as legislações que conheço os médicos, por exemplo, têm consagrado o direito à objecção de consciência, coisa que seria absurda se realmente se tratasse de garantir um direito cívico a cidadãs.
Não conheço igualmente nenhum país em que se tenha decidido pura e simplesmente - sem estipular condições - despenalizar o aborto. O que corresponderia em Portugal a retirá-lo por completo do enquadramento jurídico do Código Penal, em lugar de abrir excepções legais nas quais se preveja que a mulher não sofrerá penas de prisão.
Por tudo isto, é profundamente chocante ver este drama, este último recurso, transformado numa bandeira de luta, ou remetido banalmente para direito cívico, para já não falar num execrável acto de agitação e propaganda. Semelhante atitude é, além do mais, demonstrativa de um profundo desrespeito pela condição feminina, e por todas as mulheres e homens que fazem da maternidade e da paternidade um acto livre, responsável e muito, muito desejado. É um desrespeito por todas aquelas mulheres que, apesar das condições, das agruras da vida e das brutalidades que por vezes acontecem, decidem deixar, contra tudo e contra todos, prosseguir a gravidez que não desejaram, mas que lhes aconteceu.
É pois, uma evidência, que o aborto não pode, nem deve, numa sociedade desenvolvida e democrática, ser considerado um direito e ainda menos uma forma de contracepção. Conheço apenas dois países onde este cenário existiu ou existe ainda: a União Soviética, onde o aborto era a única forma de planeamento familiar legal e a China, onde era obrigatório para todas as mulheres e casais que já tivessem um filho. Como escrevi, em 1989, uma das principais reivindicações das mulheres na URSS e nos restantes países socialistas, durante a Perestroika, foi justamente o acesso a métodos de planeamento familiar que acabassem com a brutalidade dos abortos sucessivos. Tive mesmo oportunidade de visitar uma clínica, acompanhada pelo jornalista José Milhazes onde vi o que nunca imaginei poder ver. Felizmente hoje tal já não acontece, existem contraceptivos (de toda a espécie) à venda por todos esses países ex-socialistas.
Na URSS, a inexistência de contraceptivos chegou a gerar situações tão dramáticas que o PCP enviava clandestinamente embalagens de contraceptivos para as suas funcionárias que trabalhavam nos "países do socialismo real". Na China a situação era ainda pior (melhorou muito pouco infelizmente) pois as mulheres eram e são, forçadas pelo Estado a abortar. Para evitar explosões demográficas, o regime comunista desde o tempo de Mao Tse-Tung definiu que, por lei, cada casal podia ter apenas um filho. Se engravidarem segunda vez o Estado obriga-as a praticarem um aborto. Os testemunhos mais dramáticos que li na minha vida foram - agora que podem falar um bocadinho - os de mulheres chinesas relatando a forma como escondem gravidezes, como escondem filhos, de que a lei as obriga a abdicar da forma mais brutal e aviltante que imaginar se possa.
Digam o que disserem os promotores de campanhas de 'agit-prop', para uma mulher, uma interrupção voluntária da gravidez é e será sempre um último recurso, um acto de desespero, uma situação limite, um drama que lhe marca a vida e a inunda de sentimentos de culpa.
A questão do aborto colocou-se, pois, aos países democráticos não como a emergência de um direito mas como uma necessidade premente de procurar impedir que, perante a determinação de uma mulher em interromper uma gravidez que não deseja, não coloque em perigo - dentro de determinadas condições, que não variam muito nas soluções legislativas - a sua saúde e a sua vida e não mergulhe nos antros sórdidos do escabroso negócio do aborto clandestino.
É, porém, evidente que a obrigação do Estado é, antes do mais, garantir condições legais e sociais para que a maternidade e a paternidade não se transformem no pesadelo de como alimentar mais uma boca, ou como deitar mais um filho.
Por outro lado, só com uma enorme cegueira social se pode ver o Portugal de hoje como idêntico à realidade dos anos 1960 ou dos anos 1980, no que respeita ao planeamento familiar. Ouve-se frequentemente falar do aborto num discurso que remonta há 30 ou 40 anos. Porém, os progressos foram imensos e o acesso aos métodos de planeamento familiar não têm qualquer espécie de paralelo.
Nos anos 1980 ir a uma consulta médica de cuidados primários de saúde constituía a excepção e apenas uma elite restrita o fazia. Hoje, felizmente, não é assim. Há ainda franjas de desinformação, idades de risco, e uma grande demissão dos pais na formação dos filhos, mas é tempo de admitir que a imensa maiorias das mulheres portuguesas, operárias ou meninas empregadas dos cabeleireiros, conhecem e sabem muito bem usar o método contraceptivo que consideram adequado e na maioria dos casos sob vigilância médica.
A política de um Estado democrático deve ter como objectivo impedir que alguém recorra ao aborto por absoluto desconhecimento de alternativas, por desinformação, ou por uma tradição rural radicada nos desmanchos que as avós faziam.
Eis, porém, que alguns, na ausência de bandeiras de luta, de reivindicações mobilizadoras tiram da cartola o aborto como se tratasse de um pilar demarcador entre direita e esquerda, gerando dois tipos de reacção.
Alguma direita reage com tanto medo de voltar a parecer reaccionária, marreta, de costas para a História, com declarações mais progressistas que os progressistas e apressa a pôr-se "à la page", não vá o diabo tecê-las outra vez. Gato escaldado... Olhando para o século XX, é fácil perceber, e muitos têm-no escrito, que a direita teve uma importante vitória ideológica ao ver consagrada consensualmente a economia de mercado como a melhor forma de organização das sociedades para garantir a democracia e o bem-estar social e com essa vitória enterrou as ideologias de esquerda que se lhe opunham, nomeadamente o comunismo e mesmo o socialismo democrático, assente na planificação e estatização dos principais meios de produção mas, pelo outro lado, a esquerda vencia a direita em matéria de concepção de modelos de organização social (divórcio, planeamento familiar, divisão dos papéis tradicionais do homem e da mulher, etc) hoje inquestionáveis, não só no terreno pessoal de cada cidadão mas na realidade constitucional e jurídica dos estados democráticos.
Alguma esquerda, na falta de melhores bandeiras (proletariado já quase não há e a realidade laboral nas empresas ou na agricultura é radicalmente diferente da anterior) serve-se do aborto como de uma importante trincheira que resiste. Assistimos ciclicamente a lutas internas, a declarações e promessas de candidatos a secretários-gerais, de dirigentes partidários falando do aborto como se fosse a principal questão para avaliar da fidelidade à esquerda de um dirigente. E aqui está o aborto transformado em potencial direito cívico. Ou até em manobra de diversão como é o caso da vinda do barco holandês. Passa pela cabeça de alguém imaginar que alguma mulher, mais ou menos jovem, com mais ou menos dificuldades económicas, se dirige a um barco que é exibido de forma ostensiva e degradante nas televisões e lá entra para fazer um aborto em alto mar? Evidentemente que não.
Tanto mais que Portugal tem desde 1985 uma lei aprovada que foi, podemos dizê-lo sem medo, referendada há três anos pelos portugueses. Convém recordar que nesse momento se disse sim à legislação existente e não à sua alteração. Em referendo livre e democrático.
Não se pode deixar de questionar: porque vem um barco para Portugal e não para a Argélia, ou para a Arábia Saudita? Ou para vastas zonas do globo onde as mulheres são casadas à força com quem nunca viram, como acontece ainda em muitos países islâmicos? Porque não navegam até ao Irão onde bater na mulher é um direito do seu dono? Uma coisa é certa, encheriam o barco! Mas falta-lhes a coragem... Não se resiste a perguntar ainda que razão as impede de salvar mulheres africanas, condenadas à morte por apedrejamento, acusadas de adultério, e aí sim fazem o que já Cristo fez há 2 mil anos? Houve no entanto quem fizesse uma campanha solidária que salvou a vida de Amina, grávida e condenada por um tribunal a ser apedrejada até morrer.
O drama da interrupção voluntária da gravidez merece ser tratado com mais respeito e com mais seriedade.