quinta-feira, fevereiro 26, 2004

relance 110

Por que há tão poucos políticos cristãos?

Responde o ex-presidente italiano, Oscar Luigi Scalfaro

--Por que há tão poucos cristãos bem formados na política?

--Scalfaro: Eu começaria com uma afirmação de princípio. Segundo o direito natural, ratificado por muitas constituições, a tarefa de educar e formar os jovens, as crianças, não é um direito dos mestres da escola. Recebem este direito por «delegação». O direito/dever de formar o cidadão corresponde, em primeiro lugar, aos pais. Quantos pais são capazes de dar esta formação? Do meu ponto de vista muito poucos. Quando estuda um jovem seus pais fazem todo o possível para persuadi-lo a tomar compromissos políticos. E, quando começa a trabalhar, dizem-lhe: “se te envolves na política, vais te envolver com problemas. Vão te despedir do trabalho!”.

A outra entidade que tem direito/dever de formar, por razão divina, é a Igreja. Tem o direito de formar o cristão como pessoa individual, como componente da família como homem que trabalha, que estuda, que se diverte…; como homem que participa da comunidade, que tem direitos e deveres. A Igreja é apta a formar, mas, o faz? Permito-me dizer que a Igreja tem lacunas neste campo. Tem muitas lacunas.

--O senhor teve um papel decisivo no Partido da Democracia Cristã na Itália. Não crê que faz falta também hoje um Partido abertamente cristão?

--Salfaro: Neste momento, o como não me interessa. Não me interessa o fato de que tenha que criar ou não um partido confessionalmente católico. O que me interessa é que cada cidadão cristão viva sua condição de cidadão enquanto cristão. Isto é o que realmente me interessa, pois o Senhor não julgará um povo, mas a pessoas individualmente. E não poderei dizer: «como ninguém se comprometia, portanto, eu tampouco me comprometi». O importante para o Senhor é se cumpri meu dever. A grande questão é que os fiéis compreendam que não é suficiente ter idéias boas. Não basta dizer que o Evangelho vale para todos os tempos. Em 2000 anos, não envelheceu nem uma só de suas palavras. O Evangelho vale para todas as pessoas e para todos os povos. Vale para os Estados e os governos. Vale para as organizações internacionais. Não é possível crer e não se servir dele. Não se pode dizer: não me serve de nada, pois hoje já não serve. O Evangelho tem a capacidade de resolver os problemas internacionais ou nacionais de todo tipo. A questão hoje em dia consiste em voltar para começar com paciência a mostrar desde a catequese que há um problema de formação.

Há um modo cristão de ser médico, advogado, agricultor, chofer? Sim há uma maneira cristã de exercer uma profissão, não haverá também uma maneira cristã de fazer política? Se não há, então melhor acabar e irmo-nos. E se é assim, teremos que ficar vendo com os braços cruzados e rezar? Não, não é suficiente. Certamente é indispensável rezar, mas não é suficiente, quando existe a possibilidade de fazer algo.

--O documento da Congregação para a Doutrina da Fé explica que existe uma laicidade na vida pública; a dizer, em política são os leigos que tem de tomar as decisões, não os pastores, seus bispos. Como você viveu isto?

--Scalfaro: O bispo não pode dizer a um cirurgião como tem que operar. Não pode dizer a um advogado como tem que exercer sua profissão. Na Universidade católica nos ensinaram a ética profissional. Depois, cada um faz seu trabalho: advogados, psicólogos, etc. Nos deram uma medida. A nós corresponde tomar as medidas de cada coisa, cada dia, levando sempre a medida no bolso.

Certamente é importante encontrar pessoas que exerçam sua profissão como cristãos, que se convertam em exemplos, pessoas que nos mostram com sua vida que crêem.

O importante, portanto, é preparar o cristão para ser cristão, recordando que a graça de Deus existe e que não temos mais que acolhê-la. E, como se não fosse suficiente, se dá um milagre curioso, pois Deus responde a todas nossas exigências, dado que o amor não é filho da lógica, o amor de Deus tampouco é filho do raciocínio. Então, Deus, que por si só é mais que suficiente para cada um de nós, nos deu também a sua mãe. Não é lógico, mas assim é a lógica do amor de Deus.

--Cristo pode ser um modelo para os políticos de hoje?

--Scalfaro: A Igreja utilizou sempre uma terminologia que não me agrada. Não fala de vida «política» de Cristo; fala mais de vida «pública». É o mesmo, mas preferiria que se falasse de vida política. Por que Cristo morreu? Só perguntar-me: se Cristo tivesse falado da ressurreição, que muitos não aceitam, o teriam matado? Por que lhe mataram? Porque disse: «Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!». Sete vezes. Os escribas e fariseus eram os que mandavam. Atacou o mundo que mandava. E, com que palavras! «Sepulcros caiados». Eu não gostaria que me chamassem de sepulcro caiado. «Serpentes, raça de víboras!» (Mateus 23, 23-33). Palavras de uma força incrível. Outra passagem é a dos vendedores expulsos do templo. O mataram por causa desta vida política.

Para entendê-lo podemos ver também o exemplo de Maria. Maria seguiu Cristo em toda sua vida pública. Quem estava junto à Cruz? Maria. «Stabat» (estava de pé), diz o Evangelho de João. É um dos termos políticos mais fortes. Na realidade, fala no plural, pois havia várias mulheres. Mas este «stabat» é surpreendente, pois mostra como na vida --e talvez de maneira particular na vida política-- há momentos nos quais cada um tem que estar de pé junto à cruz.

--Não crê que é demasiado idealista? Um político pode realmente viver tudo isto?

--Scalfaro: Temos tido homens do «stabat», como Alcide de Gasperi. Se pensarmos em Europa, se pode mencionar Robert Schmann, de quem avança a causa de beatificação. Pensemos também em Giorgio La Pira.

--Estes homens viveram imediatamente depois da segunda guerra mundial. Depois desta guerra, particularmente devastadora, parece que se deu uma espécie de despertar moral na sociedade que favoreceu a missão destes homens. Mas, e hoje?

--Scalfaro: É necessário que haja milhões de mortos e que cidades inteiras sejam destruídas para repudiar a guerra, como diz o artigo 11 da Constituição italiana, redigida depois da guerra? E, 50 anos depois, deve-se voltar para começar de novo? Somos tão primitivos, analfabetos e mesquinhos?

No paraíso poderemos fazer muitas perguntas a Deus. Eu lhe perguntarei: «Senhor, deu graças a Nero, a Diocleciano? Deixaram a Igreja da época ao pó ao matar numerosos cristãos, e dando assim nova vida à Igreja». No paraíso creio que há várias categorias de santos. Estão os santos da pobreza: santos da pobreza interior --o primeiro deles são Francisco de Assis-- e os que ajudaram os outros a serem pobres --entre eles estará «são» Napoleão Bonaparte, que ao despojar à Igreja seus bens, a purificou--.

--O senhor desempenhou um papel decisivo contra o terrorismo na Itália, pois foi ministro do Interior. O senhor teve que lutar contra o terrorismo com as armas da lei e da moral. No caso do terrorismo, onde se dá a tentação de ignorar a lei e a moral pelo bem do Estado e de todos, qual é a lição que o senhor tirou nesses anos?

--Scalfaro: A primeira lição é que é um erro falar de «guerra ao terrorismo». Para lutar contra o terrorismo, são suficientes as operações da polícia, isso se, talvez com milhares de homens, mas a concepção é diferente. A guerra envolve um povo e um Estado. Mas, quando lutamos contra o terrorismo, por exemplo no Afeganistão ou Iraque, todos os que são assassinados, são terroristas? Morrem por causa do terrorismo?

A primeira coisa que se deve fazer na luta contra o terrorismo é fazer alianças com aqueles que querem combater o terrorismo. Quando era ministro, sempre disse que a luta contra o terrorismo ninguém ganha sozinho. Dizia aos governantes da Europa daquele momento: se um país é sacudido pelo terrorismo, o seremos todos. A primeira lição, portanto, é a criação de uma grande aliança para lutar de maneira lícita, sim, mas até o final.

A aliança recolhe informações. Se estou aliado com outros povos, comunico-lhes notícias que me chegam, ainda que não sejam mais que rumores. Digo tudo o que sei e os demais me dizem tudo. É a primeira defesa, uma defesa enorme. Caíram as Torres Gêmeas de Nova York e, ninguém sabia nada? Quantos reconheceram que nós formamos esses pilotos? Pode-se constatar, portanto, uma falta de atenção e, portanto, de defesa, que começa pela razão e não pegando tiros.

Nós buscamos esconderijos de terroristas e assim podemos encontrar as alianças que se davam entre os terroristas. Então advertíamos os governos. Quando era ministro, encontramos um esconderijo de terroristas que estavam relacionados com o IRA, da Irlanda do Norte. De fato, dá-se uma solidariedade entre terroristas. Este trabalho serve para prevenir e combater.

Por último, há uma questão, que na realidade está antes que todas as demais: de onde vem esta enfermidade? Não serve de nada fazer muitas coisas se não se compreende de onde nasce esta enfermidade. Há demasiados ricos e demasiados miseráveis. Não digo pobres, digo miseráveis, pois a dignidade da pessoa é ferida. A pessoa que não tem nada para comer, que não tem nada para vestir, é aniquilada. Estas injustiças são piores que um arsenal de bombas atômicas. Podem explodir a qualquer momento. Se não compreendo a enfermidade, então só posso reprimir. E não se acaba nunca.

Um exemplo: a situação no Oriente Médio, onde ninguém quer estabelecer o problema. Mas se continuo reagindo, não tenho mais que fabricar terrorismo.

Logo está o diálogo. Um dia, alguém me disse: como é possível dialogar com essa gente? Respondi-lhe: como fizeram os Estados Unidos para dialogar com Osama Bin Laden? Como fizeram para abrir o diálogo com China que anos atrás havia sido condenada por não respeitar os direitos do homem? Em um determinado momento se buscou criar relações com a China para introduzi-la na rede do mercado mundial. Por que? Por que para fazer mercado temos que ser dois. Antes se dizia, sem a China eu tenho mais trabalho. Em um determinado momento se deixou de falar das condenações à morte, das execuções, dos direitos do homem. Por que? Porque a China era necessária. Os caminhos do diálogo, diretos ou indiretos, sempre existem. Basta querer. Não obstante, quando o homem opta pela guerra, renuncia o raciocínio para passar para a força das armas. É a derrota da dignidade do homem.

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