quarta-feira, outubro 29, 2003

Relance 22

Excelente Texto,,,, nao hesite a ler !


Atrocidades


João César das Neves

In DN – 27. 10. 2003



Apesar do delírio generalizado que o País vive, ainda surgem problemas importantes. A questão do aborto, por exemplo, parece querer voltar à nossa cena política. Ao fazê-lo, porém, renova-se um velho paradoxo de difícil solução. Surpreendentemente, poucos parecem notar as enormes semelhantes entre o discurso a favor da despenalização do aborto e aquele que foi usado ao longo da História para justificar outras atrocidades horríveis.

O ponto de partida é a negação da humanidade. Os abortistas afirmam, explícita ou, em geral, implicitamente que o embrião não tem dignidade humana. Se tivesse, obviamente que toda a sua argumentação cairia pela base, pois nenhum interesse tem prioridade perante o direito à vida. Ora as piores abominações da História nasceram precisamente da mesma recusa do estatuto humano. Os nazis apregoavam que judeus, ciganos, deficientes e tantos outros, não pertenciam à espécie humana, mas a uma raça inferior, por isso descartável. Os esclavagistas baseavam o seu comércio infame na certeza da menor humanidade daqueles que compravam e vendiam. Todos os genocídios, limpezas étnicas, chacinas e barbaridades partem deste horrível axioma.

A segunda ideia é que essa morte é útil à sociedade. Os abortistas dizem defender apenas a liberdade e a dignidade da mulher. Também os nazis pretendiam corrigir a injustiça da Grande Guerra, promover a pureza da raça alemã e o seu espaço vital. Os esclavagistas viam-se como peças essenciais da prosperidade e civilização. Ben Laden considera-se um defensor da fé. A generalidade dos criminosos de guerra justificam-se em termos semelhantes.

Mas, e este é o terceiro ponto, aqueles que essas práticas alegam defender acabam sendo as suas principais vítimas. Não restam dúvidas que as mulheres que abortam são quem mais sofre com esta aparente solução dos seus problemas. Sofrem com a violência, com o vazio, com o remorso. Também a Alemanha foi a maior mártir das loucuras nazis e aqueles que ao longo dos séculos aderiram à escravatura, perseguições e chacinas viveram para ver a falsidade da solução criada pela sua própria crueldade.

Assim, estamos hoje a assistir na nossa sociedade livre e sofisticada ao regresso de retóricas e argumentos que julgávamos enterrados. E o aborto não é o único caso. As campanhas antiglobalização por exemplo, seguem de perto a lógica da antiga «caça às bruxas», quando pessoas específicas são acusadas de males genéricos e abstractos com base em teorias deficientes. O elemento mais surpreendente, porém, é o de entender como é possível que pessoas sérias e honestas caiam nesta armadilha. Porque é evidente que a esmagadora maioria dos defensores da despenalização do aborto são cidadãos normais, correctos e bem intencionados, que pretendem apenas o bem comum. Eles ficariam decerto muito ofendidos e magoados ao verem-se comparados com bárbaros e nazis.

É esse precisamente o paradoxo, hoje como antes. Também ao longo dos séculos milhões de cidadãos cordatos, prudentes e respeitáveis tiveram escravos, apoiaram o racismo ou defenderam genocídios. Foram miríades os alemães inteligentes, pacatos e atenciosos que votaram e apoiaram Adolf Hitler. Temos dificuldade hoje em entender isto. Também daqui a décadas haverá muita gente que não compreenderá como é que foi possível que pessoas boas e cordatas pudessem hoje aceitar o aborto.