quarta-feira, outubro 22, 2003

Relance 15

Para Reflexão ....

A Conferência das Aves



Um certo número de aves entendeu um dia que deveria ter um rei. Tomada a decisão, pediram a uma sábia e prudente poupa – um pássaro com uma crista em feitio de leque – que lhes concedesse ajuda na busca do rei. A poupa disse-lhes que o rei por que ansiavam tinha o nome de Simurgh, o que no idioma persa significa «trinta aves». E que vivia num esconderijo da montanha de Kaf; e disse-lhes também que a viagem até esse sítio era perigosa e difícil. As aves imploraram à poupa que as guiasse. A poupa deu o seu acordo e começou a instruir as aves uma a uma, tendo em conta os diversos níveis de entendimento e os variados temperamentos individuais. Fez-lhes saber que, para alcançar o cume da montanha, teriam de passar por cinco vales e dois desertos; depois de haverem atravessado o último deserto, então poderiam entrar no palácio do rei.

As que eram dotadas de débil vontade, receosas da viagem, começaram a inventar desculpas. O papagaio, vaidoso e egoísta, disse que partiria em demanda do Santo Gral em vez de se lançar na busca do rei. O pavão, a lendária ave-do-paraíso, anunciou que sonhara com o seu regresso ao céu e que, assim sendo, ficaria pacientemente aguardando esse dia. O ganso fez saber que a sua vida estava sempre dependente da vizinhança da água e que morreria se, por acaso, da água se afastasse. O botauro (espécie de cegonha da Sibéria Central) apresentou uma desculpa semelhante; não lhe é possível aventurar-se para longe do mar, pois é tão intenso o seu amor pela água que, embora haja repousado anos a fio à beira-mar, nunca se atreveu a beber uma gota com medo que a água do mar se pudesse esgotar. A coruja, que vive de noite, declarou que antes preferia ficar para devassar ruínas, na esperança de um dia achar um tesouro. O rouxinol disse que não sentia qualquer necessidade de viajar, pois estava apaixonado pela rosa e esse amor lhe bastava. Disse também que sabia segredos de amor que nenhuma outra criatura conhecia. E com voz de maravilha cantou o amor:



«Eu sei do amor e seus segredos.

Pela noite fora solto meu cantar de amor.

A música da mística flauta inspira o meu lamento.

E sou eu quem dá o tremor à rosa

E no peito dos amantes faz bater os corações.

Desvendo mistérios com a triste música minha

E quem me ouve perde-se em êxtase.

Não há quem saiba os segredos meus

E só a rosa os conhece.

De mim me esqueço e em nada penso

Senão na rosa.

De que me serve alcançar o Simurgh,

Que nada tem para me oferecer?

O rouxinol nada mais quer

Senão e apenas o amor da rosa!»



A poupa ouviu o rouxinol pacientemente e respondeu-lhe:

«Tu estás muito preocupado com a forma exterior das coisas, com o prazer de uma forma sedutora. O amor da rosa cravou espinhos no teu coração. De nada vale a esplendorosa beleza da rosa, que em poucos dias se desvanece. E crê que o amor por coisa tão efémera apenas te aparta de Aquele que é a Perfeição. Se a rosa te mostra o teu sorriso é para te causar dor e penar, pois tu sabes que só na primavera ela para ti sorri. Abandona a rosa e esquece o vermelho da sua cor».

Aonde pretende chegar Attar com esta simples conversação? Nós, os seres humanos, sentimos o desejo de alcançar a perfeição mas, muitas vezes, tentamos travar o processo assim que deparamos com os mais ténues sinais de progressos. Isto é particularmente evidente com os iniciados na via espiritual: muitos deles ficam maravilhados com os primeiros passos do seu despertar para depois se confundirem com a plena iluminação. Attar adverte-nos para estes perigos: - não devemos tomar o amor pelas coisas imaginárias como sendo pelo Real. É por esta razão que o rouxinol deve abandonar a sua enganosa atracção pela rosa e assim poder entregar-se à busca do perpétuo Bem-Amado.

Depois a poupa deliciou as outras aves, contando-lhes histórias prodigiosas sobre aqueles que já haviam empreendido a perigosa jornada. Attar usas um vastíssimo imaginário simbólico e, tal como na história do rouxinol, cada um dos contos oferece ao leitor o deleite da contemplação de um mais profundo significado.

Após haverem ouvido as histórias da poupa, as aves sentem-se determinadas a iniciar a sua viagem e voar em direcção ao primeiro vale. Todavia, assim que deparam com as primeiras contrariedades, apercebem-se que o caminho será certamente muito mais espinhoso do que haviam imaginado. Algumas começam a inventar novas desculpas. Há uma que proclama não ser a poupa suficientemente experiente e sabedora para as conduzir. Uma outra queixa-se de que Satã a assaltou e lhe está a tornar as coisas demasiado difíceis. Outra ainda anuncia que não pode passar sem dinheiro e que sente falta de uma vida de luxos e conforto.

Finalmente a poupa concluiu que a única maneira de as aves se decidirem é descrever-lhes os sete vales e desertos. O primeiro é o Vale da Demanda. Quem chegar a esse vale terá de buscar a Verdade sem cessar e sem descanso, disse a poupa. Procura-se, com constância, um maior e mais elevado sentido da finalidade da vida. Só quem procura dedicadamente pode percorrer com segurança o primeiro vale e voar para o segundo, o Vale do Amor. Quem aqui chegar, sente um desejo sem limites de ver o Rei Bem-Amado. No coração é ateado um fogo de amor, cujas chamas crescem sem cessar e tudo consomem. É um lugar bem mais perigoso do que o primeiro vale, pois muitos são os obstáculos com que o viajante depara e experimentam o seu amor. É porém este mesmo amor que o impele para além do vale e o encaminha para um país de maior devoção, o terceiro vale, o Vale da Gnose. Uma vez atingido este país, o coração do viajante é iluminado pela Verdade e aqui adquire o conhecimento interior do Bem-Amado. A jornada continua em seguida para o Vale do Desprendimento, aonde ele ou ela perde o desejo de ser possuidor dos bens e das coisas terrenas. O viandante que percorre este vale não sente qualquer atracção pelo mundo material; liberto de desejos, o iniciado é agora completamente independente.

Cada novo lugar que o viandante alcança apresenta maiores perigos que o anterior e terá de ser explorado passo a passo, pois muitas serão as provas, novas e difíceis, a que terá de se submeter exigindo tenacidade e sofrimento. Assim, cada descoberta de uma nova terra é uma experiência inesperada.

O quinto vale é o Vale da Unidade. Aqui, vai o viandante ficar a saber que todos os seres são, na sua essência, apenas um, que todas as ideias e experiências e criaturas da vida têm, na realidade e por mais numerosas e variadas que sejam, uma e apenas uma Fonte. Em seguida, o viandante chega ao Deserto do Deslumbramento. Esquece-se da sua própria existência e da existência de todos o outros. Vê a luz, não com os olhos da mente mas com os olhos do coração. Abre-se a porta do divino tesouro, do segredo dos segredos. Neste país não mais funciona a inteligência comum. Aqui, o viandante a quem se pergunta quem é o que é, apenas responde «Eu nada sei!»

Finalmente chega-se ao Deserto da Aniquilação e da Morte. É este o momento em que o iniciado por fim entende como a água se dissolve no oceano. Perde-se e afoga-se no Oceano da Unidade com o Bem-Amado. Chegou ao fim e ao destino da jornada de perseguição do rei.

Depois de haverem ouvido a poupa a descrever-lhes o que as esperava, as aves ficaram tão excitadas que imediatamente reataram a jornada. Durante o caminho, algumas morreram de calor e outras afogaram-se no mar; também houve as que foram vencidas pelo cansaço e não puderam continuar; animais bravios caçaram umas tantas e ainda outras cederam à tentação dos lugares por onde passavam e assim se distraíram e perderam, e para trás foram deixadas. Apenas trinta de todas aquelas aves lograram alcançar o seu destino – a Montanha de Kaf.

À entrada do palácio do rei, o guarda-portão tratou as trinta aves de modo muito pouco amistoso. Mas as aves, que já tinham passado pelo pior, foram tolerantes e não consentiram que aquela agressividade as perturbasse. Finalmente, o servo privado do rei saiu para as receber e acompanhar até ao salão do rei. Assim que entraram no salão, as aves olharam em redor, tomadas de espanto. Não entenderam o que estava a acontecer, pois em vez de verem o Simurgh, aquelas trinta aves tudo o que viam era... trinta aves. Por fim perceberam que, ao olhar em para elas próprias, haviam achado o rei e que, na sua demanda do rei, se haviam encontrado a elas próprias.

Todos aqueles que passam pelas sete cidades do Amor estão purificados. Quando chegam ao palácio do rei, encontram o rei revelado no espelho dos seus corações. (Fariduddin Attar)