terça-feira, novembro 17, 2009

«Aquelas coisas parvas que eu disse» (José Saramago)


As declarações bombásticas proferidas em Penafiel por José Saramago, Nobel da Literatura e destacado membro do partido comunista português, não deveriam contrariar o horizonte de expectativas de ninguém: «a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana»; «o Deus da Bíblia não é de fiar»; «a Bíblia passou mil anos, dezenas de gerações, a ser escrita, mas sempre sob a dominante de um Deus cruel, invejoso e insuportável. É uma loucura!». José Saramago tem todo o direito de dizer o que pensa sobre a Bíblia e sobre Deus. Tem exactamente o mesmo direito à liberdade de expressão que assiste a todos os que reagiram às suas declarações nas diversas acções de lançamento do seu último romance.


Numa atabalhoada tentativa falhada, quase patética, de explicar «aquelas coisas parvas» (como ele próprio as qualificou posteriormente), Saramago convocou conferências de imprensa e desdobrou-se em entrevistas. Armou-se em vítima ofendida de perseguição, esforçando-se por desviar a atenção das declarações desmedidas que fizera e por recentrar a discussão em torno do romance «Caim», que teria despertado «ódios velhos» e «incompreensíveis», curiosamente já antecipados dias antes no seu «blog». Em suma, tentou aparecer perante todos como um mártir, imolado no altar da luta por uma putativa falta de liberdade de expressão, tanto mais incompreensível quanto as suas próprias atitudes o desmentem com fragor. Neste ponto, até subscrevo por inteiro um dito atribuído ao velho Voltaire: «não partilho das suas ideias, mas bater-me-ei até à morte para que possa exprimi-las».


Não me afecta minimamente aquilo que Saramago diz sobre a Bíblia ou sobre Deus; pouco me importa que Saramago interprete à letra narrativas literárias com mais de dois mil anos; pouco me interessa que o Nobel da Literatura não esteja disposto a compreender figuras literárias, como a parábola ou a alegoria, ou queira embarcar em bizarros revisionismos históricos; assim como não me perturba mesmo nada a legítima estratégia publicitária que rodeou o lançamento do seu romance. Cada um vê o mundo e a história com os olhos que tem, quer ou pode.


O que de facto, como católica, me indignou - e presumo que até Saramago admitirá que os católicos também têm o direito de manifestar livremente a sua indignação - foi o modo como, falando da Igreja Católica, se referiu ao sacramento do baptismo, dizendo que uma criança recebe «na boca um bocado de sal», é «ungida com uns óleos e passa a pertencer à companhia, a fazer parte da quadrilha». Uma quadrilha é um colectivo de ladrões, bandidos ou criminosos. Que Saramago não seja capaz de compreender o significado dos rituais cristãos posso admitir. Tenho contudo muito dificuldade em aceitar que insulte a comunidade católica, apelidando-a de «quadrilha», e que ridicularize e vilipendie os rituais da minha ou de qualquer outra religião! Parece até que Saramago, com o estatuto social que o Nobel lhe concedeu, está usar os «media» para, numa espécie de fogueiras do século XXI, queimar a «quadrilha» que tanto parece odiar.


Partilho da opinião elegantemente expressa pelo escritor António Lobo Antunes, na magnífica entrevista que há dias deu à jornalista Judite de Sousa. Aludiu de forma reticente à pessoa «que teve a infelicidade de dizer certas coisas, e que provavelmente continua muito satisfeito com elas», afirmando que o que sentira, com os poucos ecos que lhe chegaram da polémica, fora medo: medo de chegar à idade de Saramago com tão pouco sentido crítico.


É o mais elementar exercício de misericórdia para com um cidadão de tão provecta idade (já algo arrependido e baralhado), misericórdia essa também prescrita no tal «catálogo de maus costumes», que me leva a exprimir um voto: oxalá a Procuradoria da República esteja distraída e não se apresse a ver aqui configurado o crime público previsto no art.º 252 do Código Penal Português: «Quem publicamente vilipendiar acto de culto de religião ou dele escarnecer é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias». Ou será que já foi a consciência da gravidade do referido insulto que levou Saramago a propor «um novo Direito do Homem: o direito à heresia»? Ficaria assim legalizada a possibilidade de se insultar qualquer religião ou quem a pratica. Oxalá esteja enganada!

Ana Maria Ramalheira
Professora Universitária
(Diário de Coimbra, em 10-11-2009)