segunda-feira, novembro 05, 2007

ABORTO: ÉTICA E LEI


1. Há uns dias soubemos por uma nota do Ministério da Saúde que o ministro homologou um parecer solicitado à Procuradoria-Geral da República sobre a conformidade do Código Deontológico dos médicos com a Lei 16/2007, que alterou o artigo 142 do Código Penal, introduzindo no sistema jurídico português uma nova causa de isenção da responsabilidade criminal pela prática do aborto.

Ficámos também a saber que o ministro da Saúde voltou a pedir à Ordem dos Médicos que altere com urgência o seu Código Deontológico, adaptando-o à actual legislação penal, ficando a aguardar, durante 30 dias, sobre “diligências tomadas para a reposição da legalidade”!

Esta atitude do Governo enquadra-se na já compulsiva e obsessiva prática do “quero, posso e mando” ao atropelo das regras e valores que todos esperaríamos de um executivo democrático.

Uma intromissão intolerável e que não augura nada de bom!

É habitual a confusão entre a lei e a ética. Mas o que é certo (e elementar) é que nem tudo o que é legal tem automaticamente o estatuto de conformidade ética e nem todo o enquadramento ético é regulado pela lei.

Conduzir pela direita é uma norma legal mas nada contem de relevância ética. E, ao contrário, há valores éticos na conduta humana que a lei jamais pode regular ou que simplesmente omite. Por exemplo, o exercício de certas funções políticas ou públicas pode não implicar legalmente determinadas incompatibilidades para cargos futuros, mas exigir que eticamente essas restrições se imponham. Poderemos encontrar muitos (bons e maus) exemplos desta situação.

2. Dá que pensar que este Governo, e em particular, o Ministro da Saúde, sempre tão solícito quando se trata de liberalizar a prestação dos cuidados de saúde exonerando até o Estado de exercer as suas responsabilidades, apareça com uma face ultra intervencionista impondo abusiva e intoleravelmente alterações às normas de conduta, aos códigos deontológicos e éticos.

Esta exigência de revisão do Código Deontológico dos Médicos é inaceitável e prepotente e faz lembrar até o que se passou em regimes ditatoriais em que se exigia a uma determinada classe actuar contra as mais elementares regras da sua conduta profissional.

Uma coisa é o cumprimento da lei, ainda que dela se possa discordar. Está fora de causa. Outra é a imposição num código ético (que está muito para além da conjuntura das leis) de uma norma violadora de um juramento profissional que tem 2500 anos.

3. Mal vai a sociedade quando a moral se esgota na lei. A licitude penal não acarreta necessariamente a sua licitude perante a consciência.

A escravatura foi, durante muito tempo, legal mas jamais se tornou eticamente aceitável. E não é por haver pena de morte nalguns países que neles se impôs no código ético dos seus médicos a obrigação de colaborar na agonia letal dos condenados.

Pergunto até porque não age o governo tirando consequências da descriminalização do consumo de drogas, obrigando os médicos a explicitar no seu código de Conduta que a sua “prescrição” não será condenável.

Nem o antigo regime se atreveu a impor num código dos jornalistas a aceitação (deontológica) da censura prévia, prática que à face das normas então vigentes era legal!

4. Justamente porque a conformidade da lei com a ética nem sempre é total, é que nos Estados de Direito se consagrou a figura da objecção de consciência. Será que o Governo quer transformar a dita objecção numa violação da liberdade individual?

Aliás, o Ministério detesta tanto esta figura que no caso da prática de abortos até impediu os objectores de participarem na informação médica que precede a realização do acto, não fosse o diabo tecê-las e prejudicar tão “nobre e ético” serviço!

Pasme-se: o ministro da Saúde quer que uma nobre profissão que serve para curar, cuidar e lutar pela vida das pessoas, “certifique” pela via deontológica que a barreira – a barreira da vida – seja quebrada.

Quando se exige, num código ético dos médicos, que a morte como acto médico seja uma solução, sabe-se que se entra num pântano de onde já não se sai. Basta saber história e ter memória.

5. Estamos a ser invadidos por uma onda de relativismo sem limites, onde não há fronteiras entre o bem e o mal. Pergunto, onde vai parar esta onda que quer impor, neste caso, à classe médica o “virtuosismo profissional” de fazer abortos?

A vida não se relativiza, nem é moeda de troca. É este cretino relativismo que quase anestesia os comportamentos letais, porque retira valor absoluto à vida e despreza os que não têm voz. É este relativismo desvertebado que igualiza, moralmente, fins e meios.

É o tempo governamental do vale tudo. Da dureza prepotente para uns e da moleza inebriante para outros.

Se um dia o Código Deontológico dos Médicos aceitar explicitamente a morte como uma solução, como poderemos acreditar na salvaguarda de valores perenes e inegociáveis da civilização, entre os quais e acima de todos está o (mais) absoluto: o respeito pela Vida?

António Bagão Félix
Outubro de 2007