sexta-feira, agosto 10, 2007
A eutanásia em questão
Ficámos recentemente a saber, pela imprensa, que 80 por cento dos médicos oncológicos portugueses se recusariam a praticar a eutanásia, mesmo que para tal fossem solicitados.
Por eutanásia propriamente dita deve entender-se o acto de matar deliberadamente um doente incurável para pôr fim ao seu sofrimento, quer dizer, por razões de piedade. Dela se aproxima o suicídio assistido: a intervenção mortal de alguém é, nesse caso, feita a pedido do doente referido.
O estado actual da opinião médica merece respeito; mas, seja ele qual for, é preciso admitir, sem ambiguidades: a eutanásia e o suicídio assistido põem em causa a inviolabilidade da vida humana, bem jurídico que dá lugar ao primeiro dos direitos fundamentais na ordem da existência, o direito à vida.
A nossa Constituição e os textos jurídicos internacionais protegem a vida. Cita-se, em apoio desta afirmação, o art. 24.º da CRP, o art. 3.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o art. 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o art. 6.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
Os dois últimos instrumentos citados deram lugar, aliás, a um movimento em favor da abolição da própria pena de morte, traduzido na aprovação dos Protocolos Adicionais n.º 13 e n.º 2, respectivamente, à Convenção Europeia e ao Pacto Internacional.A inviolabilidade da vida humana é assim um direito das pessoas e um princípio da comunidade. Este princípio contesta os dois postulados antropológicos em que se baseia a defesa da eutanásia voluntária e do suicídio assistido, a saber: 1) nalgumas circunstâncias, morrer é um bem e viver é um mal; 2) o ser humano tem o direito de escolher arbitrariamente ocasionar a morte a si ou aos outros.
Como ofensas a um bem jurídico fundamental, a eutanásia voluntária e a ajuda ao suicídio constituem actos gravemente anti-sociais. Por isso, o Código Penal os incrimina, nos seus arts. 134.º e 135.º, respectivamente.
A precisão dos conceitos é aqui muito importante: a eutanásia voluntária e o suicídio assistido, condutas consideradas contrárias à inviolabilidade da vida humana, não devem confundir-se com a renúncia ao excesso terapêutico.
A renúncia ao excesso terapêutico consiste, convém esclarecer, na decisão de, ante a iminência de uma morte inevitável, rejeitar em consciência tratamentos que significariam apenas um alargamento precário e penoso da vida, sem interromper entretanto os cuidados normais que se devem dispensar ao doente: nunca é lícito deixar de alimentar alguém.
O testemunho vivo pode ajudar-nos nestas questões? Sem dúvida. O convívio com doentes crónicos graves, com doentes terminais, que amam mais a vida do que a morte, é um complemento indispensável para o rigor exacto mas demasiado frio, por si só, das distinções aludidas.
Certamente, não se pode ignorar que a dor prolongada é difícil de suportar e que outras razões de índole psicológica podem turvar a mente até levar uma pessoa a pensar que pode, legitimamente, pedir a morte ou ocasioná-la aos outros, e fazê-lo também de boa fé. O suicídio e o homicídio resultantes podem também, aliás, não ser imputáveis pelas circunstâncias em que foram cometidos.
Não obstante, assassinar um pobre doente é inadmissível para o direito. Este é um princípio civilizacional que merece ser defendido. A bem da vida de todos: da minha e da dos leitores.
Paulo Adragão
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto