«Todos somos contra o aborto, só não queremos que as mulheres que o praticam sejam penalizadas». Quantas vezes não ouvimos da boca de partidários do “sim” no referendo de Fevereiro este tipo de afirmações? Ou, também, a ideia de que o aborto não seria liberalizado nem banalizado, que o número de abortos não iria aumentar, que passaria a vigorar um sistema de aconselhamento tendente a evitar esse aumento de uma forma alternativa em relação à penalização e até mais eficaz do que esta? Recordo-me muito bem de ter ouvido esta ideia em debates em que participei a vários dos meus interlocutores partidários do “sim”. Continuo a acreditar na sinceridade e na boa fé desses meus interlocutores. Mas estranho que estas ideias tenham deixado de se ouvir a partir do dia seguinte ao do referendo (é verdade que anda as ouvi na própria noite de 11 de Fevereiro, pouco depois de serem conhecidos os resultados) ou não tenham sido ouvidas durante a discussão da lei entretanto aprovada pela Assembleia da República.
Essa lei, deliberadamente, não fala em “aconselhamento”, mas em “acompanhamento”, com o propósito claro de afastar qualquer ideia de dissuadir ou desaconselhar a prática do aborto (o que não deixaria de respeitar a vontade livre da mulher, respeito que os resultados do referendo impõem). Tal como se rejeitou qualquer propósito de «encorajar a continuação da gravidez» (expressão decalcada da lei alemã, lei muitas vezes mencionada na campanha, designadamente pela Drª Maria de Belém Roseira e pelo Engº José Sócrates), através do apoio à busca de alternativas ao aborto. Os médicos objectores de consciência não poderão participar na consulta prévia e no referido “acompanhamento” (não vão eles incorrer na “perigosa” e “subversiva” prática de algum tipo de aconselhamento de alternativas ao aborto!). O “acompanhamento” ocorrerá no âmbito de clínicas lucrativas, obviamente pouco interessadas em limitar a prática do aborto, que é a fonte do seu lucro. Um projecto de proibição da publicidade que incite à prática do aborto, apresentada pelas deputadas Maria do Rosário Carneiro e Teresa Venda, semelhante ao de projectos anteriormente apresentados pelo próprio Partido Socialista, foi rejeitado liminarmente.
O que vemos como efeito imediato do referendo não é aquilo que diziam muito dos partidários do “sim”. Não é, obviamente, o fim da prisão de mulheres pela prática do aborto. É antes aquilo a que se referia um título de primeira página de alguns dias depois de 11 de Fevereiro: «Corrida ao Negócio do Aborto». Este título exprime bem o que se está a passar, com consequências que muitos partidários do “sim” diziam rejeitar (continuo a pensar em vários dos meus interlocutores nos debates da campanha). E há uma consequência desta “corrida” que não pode passar despercebida.
Anuncia-se que há clínicas que vão abrir ainda antes da regulamentação e entrada em vigor da nova lei, que torna o aborto livre apenas nas primeiras dez semanas de gravidez. Diz-se que tais clínicas poderão começar a funcionar ao abrigo da lei vigente. Tudo indica, por isso, que será seguido o modelo espanhol. Em Espanha, cerca de 97% dos abortos legais são realizados ao abrigo da “indicação” do “perigo para a saúde psíquica da mulher”. Trata-se de uma interpretação distorcida e fraudulenta da lei, pois não é, obviamente, o simples facto de a gravidez não ser desejada que atenta contra a saúde psíquica da mulher. De acordo com o parecer a seu tempo publicado pelo Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, são muito raras as situações em que a gravidez pode representar um perigo para a saúde psíquica da mulher (ou, como refere a lei vigente, de “grave e duradoura lesão para a saúde psíquica da mulher grávida”). Sendo tão raras tais situações, só uma interpretação ilegítima desses conceitos (como a que se faz em Espanha) poderá tornar lucrativa a actividade dessas clínicas e justificar os investimentos por elas realizados.
Poderá dizer-se que esta interpretação distorcida e ilegítima da lei vigente não tem consequências de maior, pois em breve passará a vigorar a lei que liberaliza o aborto praticado nas primeiras dez semanas de gravidez. Mas não é assim. O recurso à indicação da “saúde psíquica da mulher” passará, muito provavelmente, a verificar-se em relação a abortos praticados para além das dez semanas de gravidez (a lei portuguesa vigente, como a lei espanhola, não fixa prazos quando este é «o único meio de remover perigo de grave e irreversível lesão para a saúde psíquica da mulher grávida»). É isso mesmo que ocorre actualmente em Espanha, que se tornou uma meta do chamado “turismo abortivo”, onde se deslocam pessoas de vários países da Europa para praticar abortos (sempre com o pretexto da “saúde psíquica da mulher”) em fases de gestação mais avançadas, que não seriam permitidos pelas leis vigentes nesses países, já de si bastante permissivas.
Não é verdade que também se ouviu durante a campanha que a lei proposta era moderada, porque se limitava a tornar livre o aborto nas primeiras dez semanas de gravidez, quando outros países fixam prazos mais dilatados? Por esta via, lá se vai, mais uma vez, a “moderação” da lei!
È para estas consequências que importa alertar quando se autoriza a abertura de clínicas votadas à prática do aborto ainda antes da entrada em vigor da nova lei. São consequências que a própria lei deveria acautelar. Se nada for feito nesse sentido, nos textos legais ou regulamentares, ou no controlo da sua aplicação, há que, pelo menos, denunciar abertamente a situação. Para que não se continue a atirar poeira para os olhos de muitas pessoas bem intencionadas, partidárias do “sim” ou do “não”, para que caiam definitivamente as máscaras e para que não continue a dizer-se que «somos todos contra o aborto».
Pedro Vaz Patto