domingo, março 25, 2007

A herança cristã na União Europeia



( Hoje faz 50 anos que se assinou o Tratado de Roma que instituiu a Comunidade Económica )

Que relação existe entre a União Europeia e o cristianismo? A civilização cristã impregna o nosso continente que é culturalmente diferente do espaço asiático, por exemplo. Esta diferenciação sugere uma homogeneidade que, contudo, é preciso matizar. O cristianismo europeu está marcado por uma profunda diferença interna: a tradição latina (ou latino-germânica) ocidental e a tradição ortodoxa ou bizantina e eslava oriental O conjunto ocidental é, ele próprio, caracterizado pelo Iluminismo, produto do cristianismo e, em algumas manifestações, expressão do seu repúdio: esta sociedade é o fruto ao mesmo tempo do cristianismo e da vontade de libertação para com o domínio das Igrejas que, pela sua intolerância, conduziram às guerras de religião.

1. Nomear a herança cristã?

Para uma grande parte da Europa, o cristianismo foi a matriz da cultura durante mais de mil anos: herdávamos os valores veiculados por essa cultura. Não o reconhecer é acto de má fé. Mas querer definir a identidade europeia a partir dessa herança é negar que, alguns valores constitutivos da nossa sociedade – a afirmação dos Direitos Humanos, a liberdade de opinião e de consciência, a democracia – tiveram de ser conquistados contra a Igreja Católica, ainda que hoje reconheçamos a sua sintonia com a ética cristã.
Após ásperas controvérsias, o preâmbulo do projecto de Tratado Constitucional não nomeia as raízes cristãs da Europa. Refere-se sobriamente às “heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa”. Devemos alegrar-nos com isso ou lamentá-lo? O meu lamento incide sobre o carácter apaixonado da controvérsia, de uma e de outra parte...
Pela primeira vez nos tratados europeus, a Carta dos Direitos Fundamentais e a Constituição declaram fortemente os valores fundamentais sobre cuja base a União se pretende construir. Esses valores que se ali declaram estão em profunda harmonia com aqueles de que a tradição cristã é portadora. Mais, o próprio conceito de pessoa, fortemente afirmado nesses textos, é uma invenção da teologia cristã; e, quando se afirma como objectivo o bem de todos, “inclusive dos mais frágeis e dos mais carenciados”, esta expressão é um eco evidente da tradição evangélica.

2. Fazer viver a herança cristã

Quer nomeemos ou não as raízes cristãs nos nossos textos constitucionais, o essencial para nós, Igrejas, é fazer viver a herança de que somos os primeiros depositários e que explicitamente reivindicamos.
Esta exigência implica três coisas.
Em primeiro lugar, nós proclamamos valores e dizemos que o Evangelho é para nós a referência. Temos que interrogar-nos permanentemente, de uma forma pessoal enquanto crentes, na nossa vida familiar e relacional, mas também na nossa responsabilidade social ou política, perguntando-nos se somos testemunhas visíveis desses valores que afirmamos e do seu equilíbrio e complementaridade de conjunto: podem defender-se certos valores, no limite da intolerância, negligenciando totalmente outros. Temos também que nos interrogar como comunidades cristãs e como instituição de Igreja: as nossas maneiras de ser e de agir são um verdadeiro testemunho dos valores que declaramos?
Depois, temos que exercer uma função permanente de vigilância evangélica: os textos declaram valores, mas é preciso ainda que as políticas reais sejam a expressão e a aplicação desses valores e que não venham contradizê-los nos factos. Desse ponto de vista, o primado concedido à economia como regra de direito no conjunto dos nossos tratados deixa o social e, portanto, a solidariedade real em situação estrutural de fragilidade: torna-se assim impossível fazer valer o direito ao princípio do “bem de todos os seus habitantes, inclusive dos mais frágeis e dos mais carenciados”. Temos que nos comprometer para refazer o equilíbrio.
Por fim, não basta declarar valores, é preciso também determinar o seu conteúdo. Isso é particularmente verdadeiro no que diz respeito à dignidade humana: como cristãos e como Igrejas, temos de participar activamente no debate da sociedade a fim de determinar colectiva e politicamente as exigências da dignidade humana no respeito do pluralismo, quer dizer, aceitando que, até um certo ponto, possa legitimamente haver diferentes concepções dessa dignidade.

Texto : Ignace Berten
Foto : Francois Lenoir/Reuters