quarta-feira, janeiro 28, 2004

Relance 87

Não é de ninguém

O debate à volta da despenalização do aborto não é uma simples discussão política. Trata-se de um confronto civilizacional decisivo, onde se joga o futuro da nossa sociedade. O que está em causa não é a sorte de algumas pessoas, mas toda a nossa cultura, porque o que se digladia são duas formas opostas de ver o humano.

O ponto crucial é o de saber a razão por que pessoas sérias e sensatas consideram aceitável aquilo que milénios de civilização sempre repudiaram. Uma comparação ajuda a compreendê-lo. Suponha que estava pacificamente a almoçar num restaurante e alguém o vinha insultar porque, ao deitar fora os caroços da sua fruta, está a destruir árvores antes de nascerem. Evidentemente que ficaria surpreendido com a acusação. É verdade que a laranja é a forma de reprodução da laranjeira. Mas ali a fruta não é semente, é sobremesa; o caroço não é uma futura planta, é apenas um incómodo na refeição.

Assim se entende a indignação dos defensores da liberalização do aborto. Hoje ninguém tem dúvidas que o sexo, tal como a laranja saboreada, tem como único objectivo o prazer. Que desse divertimento resulte um embrião é um percalço desagradável que, tal como o caroço, deve ser removido de forma higiénica e expedita. Por isso se vê tanta irritação à volta do julgamento de mulheres que abortaram. Elas não fizeram mal nenhum. Apenas limparam alguns efeitos laterais do seu legítimo deleite.

Como é possível que, neste mundo sofisticado e desenvolvido, um ser humano fique reduzido à condição de detrito removível? Uma canção popular pode ajudar-nos a entendê-lo. Num álbum significativamente intitulado O Caminho da Felicidade, os Delfins incluíram o tema Nasce Selvagem. A letra afirma «Mais do que a um país, que a uma família ou geração, mais do que a um passado, que a uma história ou tradição, tu pertences a ti, não és de ninguém... Mais do que a um patrão, que a uma rotina ou profissão, mais do que a um partido, que a uma equipa ou religião, tu pertences a ti, não és de ninguém... Vive selvagem e para ti serás alguém. Nesta viagem, quando alguém nasce, nasce selvagem, não é de ninguém» (M. Ângelo/F. Cunha). Note-se como esta canção exprime bem um dos mitos definidores do nosso tempo. A liberdade total é o nosso grande sonho e a confiança na natureza, com tons ecológicos, o meio de lá chegar. A sociedade é corrupta, prende e destrói. Ser selvagem é a ânsia de todos hoje, sobretudo os jovens.

Mas, ao mesmo tempo, é importante notar a espantosa mentira em que se baseia o poema. Quando alguém nasce, se for de ninguém, morre logo. Um bebé é completamente dependente, nada livre. Mas se pertencer a uma família, se for acolhido pela sua geração, numa história e tradição, então torna-se gente. E, ainda mais, se se integrar numa equipa, num partido, se confessar uma religião, se aprender uma profissão e tiver emprego e patrão, então poderá ser um cidadão livre, ganhar a vida, não ser de ninguém. A canção diz exactamente o oposto da verdade evidente.

Assim é fácil de comprender de onde vêm as terríveis distorções que nos rodeiam, conduzindo à infâmia suprema, o aborto. Na busca da liberdade selvagem, cada um toma o seu prazer como absoluto, mesmo que isso destrua os frágeis que perturbam esse gozo. Ao acreditar que quem nasce não é de ninguém, a sociedade impõe que, antes de nascer, não se seja ninguém.

João Cesar das Neves